JOSÉ OTÁVIO VOLPI GRILLO

Data do evento: 15/12/13

O Aikido e a busca pelo Centro


Para nós ocidentais aprender a “pensar com a barriga” nos parece uma missão um tanto quanto inusitada. Desde que nascemos aprendemos que a racionalidade, a competição, o chegar “ao topo” de forma única e solitária e até mesmo “atropelarmos” quem “se meter em nosso caminho” é a única estrada a seguir. Deve ser a luta do ego para se sentir um deus. É o “peito pra fora e barriga pra dentro”, que na percepção de um típico japonês isso pode ser uma falha na construção da ordem natural da vida. De qualquer forma, vejo que aqui no Ocidente ainda temos que passar por este caminho para conseguirmos chegar à conclusão de que o ego é apenas uma sombra de nós mesmos.

Mas para que consigamos sentir nosso centro é necessário relaxar nossa mente que autoriza nosso corpo a relaxar também e quando isso acontece a percepção acerca de nossa própria realidade se transforma. Essa energia acumulada de anos e anos de percepção equivocada se transfere ao Hara, em nossa região abdominal, mais precisamente a 5 cm abaixo do umbigo. Mas ainda no centro do Hara é possível sentir um ponto chamado de Saika Tanden pelos japoneses e de Tan Tien, pelos chineses.

Se o Hara está aproximadamente a 5 cm abaixo do umbigo, o Saika Tanden está, também aproximadamente, a 5 cm para dentro deste ponto. Ali encontramos nosso verdadeiro centro de gravidade. Agora, lá, o Ki começa a ser cultivado e distribuído para todo nosso corpo. Como dizem os chineses, em nosso campo de cultivo. É a morada de nossa energia.

O Ki gerado na prática das artes marciais internas deve ser armazenado no Tanden. Para que nossa mente possa perceber e se concentrar nesse ponto em todos os momentos de nossa vida é necessário muito treino. No nosso caso, no treino de Aikido, mas é possível perceber esse ponto com outras artes marciais como o Karate-Do, Kendo, Judo ou mesmo o Iaido. O treino é esse, perceber esse centro e passar a “pensar” com ele. A consciência desse ponto pode ser observada também com práticas de respiração muito importantes nos treinos de artes marciais. Essa é também uma forma eficaz de ativarmos nossa energia interna.

Quando ativado, o Tanden faz circular o Ki pessoal pelos canais e meridianos do nosso corpo, levando vitalidade a todo o organismo e trazendo energia para que possamos realizar as técnicas de Aikido com eficácia. Por exemplo, kokyu (respiração) e mussubi (ligação) devem estar diretamente ligados a essa força interior para que possam ser executados de maneira correta.

De acordo com textos chineses, é possível definir três áreas distintas de cultivo do Ki:

1) O Tanden Inferior (na altura do abdômen): associado à energia física e, por vezes, à sexualidade;
2) O Tanden Médio (na região do Plexo Solar ou na “boca do estômago”): relacionado à respiração e à saúde dos órgãos internos e;
3) O Tanden Superior (entre as sobrancelhas): ligado à consciência e à mente.

No nosso caso, que praticamos arte marcial, na maioria das vezes nos referimos ao Tanden inferior. Com a prática começamos a sentir que todo movimento deve brotar desse centro e se expandir pelo corpo sem o uso da força física. Digo sentir porque saber racionalmente a maioria de nós sabe, mesmo porque desde que começamos os treinos de Aikido é o que ouvimos constantemente em nossas aulas. Mas sentir já é um processo que requer treino após treino, mesmo porque “sentir com a barriga” não é tarefa fácil para nós ocidentais. Focalizar toda nossa intenção nesse centro é nossa tarefa como artistas marciais. Levar essa consciência à sociedade é a nossa outra obrigação como seres humanos que desejamos um momento presente mais harmônico para nós e para os que nos cercam.

Para que possamos entender melhor como todo esse processo funciona podemos usar uma analogia entre o Hara e o Tanden. Podemos imaginar que o Hara é um círculo e o Tanden é o centro desse círculo. Um depende do outro para existir. Sem um centro não há como fazer um círculo e um centro sem um círculo é só um ponto. Agora, podemos também analisar outros cinco aspectos separadamente: o Hara, o Tanden, o Ki, o Kokyu e a mente.

O Hara poderia ser entendido como um vaso. O Tanden seria um ponto único dentro do Hara e, em nossa analogia, seria como uma semente. Quem cuida do plantio e do crescimento dessa semente é nossa mente. Quando essa semente está pronta ela gera frutos ou flores que pode ser entendido como Ki. Quando nos concentramos nesse ponto utilizando nossa respiração (Kokyu) estamos nutrindo este local para que esta semente se expanda e gere vida. Desta forma, quando bem cultivado, o Tanden pode crescer e aumentar até ocupar todo o Hara. Quando completo ou cheio pode fazer fluir o Ki excedente pelo restante do corpo (pernas, pés, ombros, braços, pulsos e dedos). E quem cuida do direcionamento deste Ki é também a mente.

É a partir daí que, de certa forma, todos os caminhos marciais japoneses estão alicerçados. Nesse nicho, todos respeitam o conceito de Hara e Tanden, sendo que desta forma, o treinamento das artes marciais japonesas passa invariavelmente pelo controle, e por seu fortalecimento explorando a força do quadril e da cintura. Por exemplo, o treinamento de shikko é de fundamental importância para percebermos nosso centro de gravidade e, ao mesmo tempo, para que nosso quadril fique forte e flexível.

Para termos uma ideia, no Japão, o Hara é um meio de comunicação, uma forma não verbal de transmitir motivações, intenções e sentimentos. Ou seja, ele “pensam com a barriga”. E para nós que praticamos Aikido é de suma importância começarmos a fazer isso de forma natural. “Pensar com o Hara” significa muito mais do que apenas realizar técnicas com maestria. Significa que podemos ter mais insights sobre a vida que nos cerca e obter uma maior consciência em como agir em diversas situações de forma mais centrada e harmoniosa com as Leis da Natureza.

Nesse estágio de consciência em que me encontro chego à conclusão que não há caminho para a felicidade e integração com outras pessoas sem estarmos em contato com esse centro, que conduz nossos sentimentos, atitudes mentais integradas e nossa vida psicológica. Ou seja, não é possível tornar-se um homem ou uma mulher completo sem estar conectado ao Hara.

E podemos dizer ainda que isso deve ser conquistado com treino, no nosso caso de Aikido, mas com todo tipo de treino verdadeiro que leva ao praticante a sentir que existe algo a mais além daquilo que ele chama de realidade. É necessário uma transformação do Ser para que se absorva esta outra realidade de uma forma mais sensível e apurada.

Para isso também a postura ereta, mas relaxada, é de fundamental importância dentro da prática do Aikido. Um aluno que realiza as formas com a coluna arqueda se desconecta do seu centro. Quando realizamos as técnicas com uma postura harmônica nos tornamos um elo entre o céu e a terra e vamos em direção àquilo que realmente somos. Isso tudo significa que o homem precisa mudar o seu ponto de gravidade de “cima” para “baixo” do corpo. O homem deve retornar ao seu centro.

Dentro do caminho (Do) sentir nosso “corpo interior” é de uma importância decisiva se quisermos avançar. Devemos sentir que não somos apenas nosso corpo, mas sim energia que pulsa e vibra. Vejo que somente quando aprendemos a nos estabelecer em nosso centro é que conseguiremos nos sentir totalmente relaxados e, consequentemente, o medo desaparecerá. Tudo se integrará ao momento presente. No relaxamento, o ego mundano, cujo domínio, normalmente, todos nós nos encontramos, se integrará à totalidade, ao Universo.

Uma frase do mestre indiano Osho nos diz que “uma vez que você encontrou o seu centro, você terá encontrado tanto suas raízes quanto suas asas.”


São Paulo, 14 de dezembro de 2013